ESTRESSE - Mitos e verdades

Por
Prof. Dr. José Maurício Barbanti Duarte

Após 30 anos de trabalho com animais silvestres e de origem silvestre em cativeiro, em especial com um grupo de animais muito sensíveis aos estímulos estressores, os cervídeos (veados, cervos), tenho mudado muito minha forma de encarar o desafio de manter o bem-estar de nossas espécies em cativeiro. Ao mesmo tempo, tenho avaliado a forma como as pessoas, inclusive profissionais de biologia e veterinária, entendem a maneira dos animais pensarem e agirem e a interferência do cativeiro na vida deles.

Então, de onde vem a “impressão” das pessoas de que os animais em cativeiro estão estressados ou “tristes”?

Sabemos que a liberdade é uma das necessidades fundamentais do ser humano e este dogma é simplesmente transferido aos animais.

Imagine se um animal sonha ou anseia estar nas planícies do Pantanal sem nunca ter estado lá! Isso não acontecerá e o animal geralmente tem uma capacidade bem menor de entender o mundo que o cerca, avaliando sempre o que está ao seu alcance e visão. O mundo deles é bem mais simples e basal que o nosso e interpretar a mente dos animas como se fosse a nossa mente é um erro e que geralmente leva a problemas aos próprios animais.

Uma ave canta geralmente por dois motivos, atrair seu par ou defender território.  Isso o fará em qualquer condição, cativeiro ou vida livre e para o mesmo objetivo. Vejo algumas pessoas dizerem que o pássaro “canta de tristeza” ou que as aves estão “tristes” nas gaiolas.

Na verdade isso só pode ser dito por uma pessoa que não conhece os animais e muito menos sua manutenção em cativeiro. Primeiro que a tristeza e a alegria são sentimentos humanos que poucas vezes podem ser percebidos nos animais da forma como ocorre nas pessoas. Por exemplo, animais doentes ficam tristes? Não, nesse caso eles ficam deprimidos pela dor, mal-estar ou febre e isso transpassa uma sensação para nós de que eles estão tristes.

Um cão que abana o rabo está feliz? Não, este comportamento é uma postura de aceitação social, ou seja, ele esta dizendo para você que ele te aceita em sua matilha, que você é bem- vindo e que sua companhia é importante para ele (já que originalmente são animais que vivem em bandos). Veja que sempre tentamos interpretar o comportamento dos animais à luz de nossos sentimentos e isso é um erro.

Assim, não posso dizer que os animas estão felizes em cativeiro e nem que estão tristes, pois estas são sensações humanas pouco compreendidas ou aceitas nos animais. Por outro lado, o estresse indica uma condição de desconforto, ou quebra da homeostase (equilíbrio) e por isso tem sido utilizado como indicador da qualidade de manejo de animais em cativeiro. O estímulo estressor provoca a liberação do hormônio cortisol pela adrenal, que é responsável por preparar o animal para a fuga ou luta contra este estímulo indesejado. Assim, a dosagem do cortisol sanguíneo ou dos seus metabóli-tos que saem nas fezes tem sido utilizada para avaliar estresse em inúmeras espécies e alguns trabalhos têm sido realizados por nosso grupo de pesquisa neste sentido.

A figura de um animal sendo solto na natureza após anos de cativeiro traz à maioria das pessoas uma imagem imensamente positiva, como se o animal buscasse a liberdade por toda sua vida e naquele momento aquele desejo estaria se concretizando. Após anos acompanhando processos de soltura e reintrodução de animais selvagens, posso afirmar que aquele momento é um dos mais estressantes da vida do animal, maior inclusive que captura e a adaptação ao cativeiro. E que o desafio a partir daquele momento será imenso e provavelmente levará o indivíduo à morte, como tem sido mostrado nos inúmeros programas de reintrodução monitorados.

Um trabalho realizado pelo nosso grupo com cervos-do-pantanal recém capturados em vida livre mostrou que os níveis de cortisol, após duas semanas em cativeiro, tendem a retornar aos níveis basais, se um manejo adequado for implantado.

Estes animais, nascidos em vida livre, após 60 dias de cativeiro já estavam bem adaptados ao manejo e à alimentação, ganhando peso e com boa saúde. Alguns deles foram reintroduzidos em áreas naturais onde a espécie não mais existia e o que pôde ser observado é que a adaptação à nova condição de liberdade foi muito difícil. Em uma área onde foi realizada a reintrodução, os quatro animais soltos vieram a óbito no primeiro mês pós-soltura. A reação deles ao novo ambiente foi inesperada para toda a equipe de pesquisa, já que a área tinha condições semelhantes ao ambiente de onde os animais haviam sido retirados e eles tinham o aprendizado necessário para sobreviverem na área. Os resultados positivos só apareceram após uma série de tentativas e protocolos, desde mudança do ambiente até o uso de drogas para interferir na reação do animal a novo ambiente.

Começamos a entender neste momento que, em geral, a aversão ao “novo” deva ser um dos mais importantes fatores geradores do estresse. Como todos aqueles que manejam animais em cativeiro sabem, a rotina é uma das coisas mais importantes para manter os animais em uma condição tranquila. A quebra desta rotina sempre é um fator potencial de estresse que deve ser considerado.

Em geral, espécies com relativamente baixo grau de ”cerebralização” (tamanho do cérebro em ralação ao tamanho corporal, que indica grau de inteligência) necessitam de poucos requisitos para se manter bem, geralmente alimento, proteção contra predadores e território.

Estes requisitos são relativamente fáceis de se obter em cativeiro. Outro experimento conduzido pelo nosso grupo mostrou que veados-catingueiros isolados em baias fechadas e relativamente pequenas (3m x 4m) têm menores níveis de cortisol que animais que são mantidos em casais em piquetes bem maiores (10m x 20m). Mas não era de se esperar que os animais ficassem menos estressados em ambientes mais naturais? Aí que está o grande erro, ou seja, interessa mais as condições de manejo e os desafios pelos quais os animais passam do que o tamanho do recinto. Concluímos que o fato de um animal solitário na natureza estar com seu par em cativeiro não era interessante, além de outras interferências como das moscas e mosquitos que tinham maior atuação no ambiente do piquete do que na baia.

Desde então, venho me perguntando se os animais que vivem em condições de cativeiro pobres estariam realmente estressados. Para tentar responder a esta questão trabalhamos com uma espécie tida como uma das mais inteligentes do mundo, os papagaios.

Pelo seu elevado grau de cerebralização, esperávamos que suas exigências no manejo em cativeiro fossem muito altas e difíceis de serem atingidas nos diferentes manejos.

Para testar isso, realizamos uma pesquisa com quatro grupos experimentais, de 20 animais cada: 1) animais de vida livre, 2) animais de zoológico, 3) animais de criadouros comerciais e 4) animais de estimação, mantidos em poleiro ou gaiola isolados. Foram colhidas excretas dos diferentes grupos, de maneira não invasiva, a distância, para não influenciar nos resultados. Foram, então, dosados os metabólitos de cortisol, que mantêm alta correlação com os níveis circulantes deste hormônio. Os resultados mostraram que os animais de vida livre tiveram níveis de cortisol significativamente maiores que todos os grupos do cativeiro, apresentando aproximadamente o dobro dos níveis encontrados nos animais cativos. Apesar de não ter havido diferença significativa, os animais mantidos como mascotes ou animais de estimação foram os que apresentaram menores níveis de cortisol. Com isso, não estamos querendo afirmar que os animais de vida livre estejam estressados, pois esta seria a condição normal de um animal que deve lutar diariamente pelo seu alimento, defesa de território e fuga de predadores. Entretanto, certamente não podemos afirmar que os animais de cativeiro estejam estressados e temos que aceitar que as condições encontradas por estes animais são satisfatórias, inclusive condições de aparente pobreza de ambiente como no caso dos poleiros.

Após estes resultados, começamos a entender que as necessidades mais básicas dos animais, em geral, são atendidas nas condições de cativeiro. Logicamente, ali ele não desenvolverá várias atividades que seriam realizadas em vida livre, mas isso, aparentemente, não interfere no seu desenvolvimento normal e não lhe é estressante. Por outro lado, a vida em liberdade impõe aos animais um constante desafio e só aqueles que estiverem em perfeitas condições e que forem os mais aptos a estes desafios sobreviverão. Esta é a seleção natural, que ganhou consistência após os trabalhos de Darwin, há quase dois séculos. Por este motivo, inúmeros dados têm demonstrado que a sobrevida dos animais em cativeiro é tão maior que em vida livre.

Por que um animal mal instalado e manejado, que sofre de estresse crônico, viveria mais que um animal solto na natureza, em condições naturais de alimentação e reprodução? Impossível! A verdade é que estes animais em cativeiro, em sua maioria, estão em plenas condições de saúde e bem-estar e têm suas necessidades básicas bem atendidas pelo manejo instituído.

Logicamente, temos aqueles casos que fogem à regra e onde animais são mantidos em condições inadequadas, com alimentação incorreta e manejo impróprio, mas creio que estas sejam exceções, que podem ser corrigidas com uma formação melhor dos técnicos e demais pessoas envolvidas com o manejo em cativeiro de espécies silvestres.

Assim, a discussão sobre a validade ou justificativa dos animais selvagens em cativeiro deve migrar para as esferas éticas, já que tecnicamente tem sido mostrado que elas estão bem embasadas e vem sendo conduzidas com relativo sucesso pelos envolvidos com o tema. No campo ético, esta discussão se mistura com a hoje imposta à produção de animais domésticos para alimento e benefícios para a população humana.

Esta discussão ética é mais nebulosa e depende de princípios pessoais que são enormemente variáveis de pessoa para pessoa e que prefiro não abordar neste texto, cujo cunho é técnico e científico.


--
Fonte: Revista Passarinheiros&Cia - Nº 85 Ano XV - Págs. 31 a 33.

Nenhum comentário :

Postar um comentário