Abordagens sobre a bioacústica na ornitologia Parte II

Por
Dr. André Bohrer Marques

Bioacústica relacionada com outros campos do conhecimento

No primeiro artigo (Parte I – Conceitos básicos) foram expostos conceitos fundamentais sobre bioacústica, como: o som e suas propriedades, a produção (emissão), a recepção e o papel fundamental de comunicação nas aves. Neste artigo, a bioacústica será discutida integrando-a com outros campos do conhecimento. Relacionando-a com o processo de aprendizado nas aves (ontogenia do canto), como diferentes habitats podem diferenciar o canto de populações de uma mesma espécie, além de comentar como o processo evolutivo da domesticação pode afetar o canto das aves.

O APRENDIZADO DO CANTO

Apesar da grande diversidade existente nas aves pode-se, de um modo geral, dividir o canto em duas modalidades: o canto inato (características genéticas) e o canto aprendido (ontogenia) (Marler, 2004). O canto inato é transmitido geneticamente em sua totalidade, não havendo necessidade de aprendizagem pra que cumpra sua função (Silva, 1995). Esses cantos possuem a estrutura física estereotipada, garantindo assim, a especificidade da mensagem de uma geração para outra. Entretanto, isto dificulta o surgimento de variações individuais e populacionais (Vielliard, 1997, Vielliard, 2005). Este é o caso do canto das famílias Columbidae (pombos, rolas, juritis e afins), Tinamidae (macucos e inhambus) e, talvez, da maioria dos não passeriformes e dos passeriformes Suboscines. (Silva, 1995). Portanto, o canto inato corresponde àqueles aspectos do fenótipo que não são modificados pela experiência.

Porém, em muitas aves, esses aspectos inatos do fenótipo, não são suficientes para desenvolver a vocalização especifica da espécie. Sendo necessário a complementação do canto com o canto apreendido, que compreende os aspectos do fenótipo influenciados pelo aprendizado e outros tipos de experiências.

O canto aprendido se caracteriza pelo fato de não ser funcional sem aprendizado adequado. Se o filhote não ouvir o canto especifico correto no momento receptivo, ele nunca vai ser capaz de emitir um som reconhecível por seus congêneres, mesmo se ele souber reagir a este canto. O canto aprendido pode chegar a uma extraordinária complexidade, que incorpora, em certas espécies, possibilidades ilimitadas de variação pela incorporação de sons imitativos (“imitação”) ou pelo sequenciamento diversificado dos elementos sonoros (“versalidade”) (Vielliard, 1997).

Uma consequência comum do canto aprendido é o surgimento de variações populacionais até individuais (Silva, 1995). Ocorrendo, assim, a formação de dialetos vocais, nos quais, machos vizinhos apresentam cantos similares que diferem da vocalização de machos de localidades distantes (Nelson, 1999). Dialetos são cantos com pequenas variações entre populações distintas e têm sido descritos em várias espécies de aves. Os dialetos estão envolvidos em complexas relações populacionais de estabelecimento individual e da própria aprendizagem do canto (Avelino, 2003; Avelino e Vielliard, 2004).

O período em que estes pássaros estão aptos a aprenderem o seu respectivo canto varia muito, dependendo da espécie. Existem espécies que estão aptas apenas em um breve período sensitivo, durante os primeiros meses de sua vida (que é o modelo clássico aprendizado de canto, apresentado por Marler (1970) com o Zonotrichia leucophrys). E pássaros que estão aptos a aprendizagem ao longo do primeiro ano de existência e alguns ao longo de toda a sua vida (Beecher e Brenowitz, 2005).

O modelo clássico de aprendizado (breve período sensitivo nos primeiros meses de vida), foi evidenciado em estudos com pássaros canoros (Oscines). Os pássaros juvenis e os filhotes começam a emitir seus cantos enquanto vão aprendendo o canto definitivo com os pássaros adultos de sua espécie (tutores). É desta relação intraespecífica que o coanto definitivo se cristaliza pra o resto da vida deste individuo (Massin, et al., 2004; Marler, 2004; Vielliard, 2005). A janela temporal fica evidente quando pássaros são criados isolados de tutores durante o período de 1 a 50 dias de idade, e estes pássaros mostram problemas de aprendizado, pois seus cantos foram considerados anormais (Massin et al. 2004, Marler, 1970).

Empiricamente, este conhecimento é utilizado pelos criadores de curió (Sporophila angolensis) e bicudo (Sporophila maximiliani) em todo o território brasileiro. Eles realizam um manejo dos filhotes nascidos em cativeiro que envolve a presença de um tutor (pássaro) ou reprodução do dialeto preferido através de equipamentos. Neste caso, alguns criadores apresentam tamanha sofisticação, que criam estes juvenis em gaiolas acústicas individuais para que nenhum outro som, além do canto a ser aprendido, entre em contato com o pássaro. Mas, apesar de a fase inicial de vida dos curiós e bicudos serem cruciais para a cristalização do canto, estes pássaros podem não estar completamente inseridos no modelo clássico de aprendizado de canto. Isto porque, além de todo o manejo na fase inicial da vida do pássaro, esses criadores possuem muita preocupação e cuidado com os contatos acústicos das aves adultas, pois existe a possibilidade do individuo com o canto já cristalizado inserir novos sons em seu repertório.

Adicionalmente, merece ser mencionado os cantos encontrados no trinca-ferro (Saltator similis) em cativeiro, chamado popularmente de canto “biro-biro” (RJ) ou “bacurau” (ES), em que notas completamente diferentes das encontradas nos cantos normais da espécie estão presentes (Marques et al,,; em preparação). Portanto, há necessidade de pesquisar esta alteração do canto, e uma das perguntas a serem respondidas é: estes cantos alterados são resultados de relações interespecíficas? Em que a hipótese seria de que com grande pressão de captura esta espécie vem sofrendo em algumas regiões nas ultimas décadas, onde, o alvo principal é o macho. Os filhotes que ficaram órfãos de pai (pai e machos vizinhos capturados na época de incubação, por exemplo) não tiveram tutor durante o período em que a janela de aprendizado estava aberta. Consequentemente, existe uma suspeita que foram estabelecidas relações interespecíficas com cantos de outras espécies, talvez o pitiguari (Cyclarhis gujanesis), pois a sonoridade do canto alterado do Saltator similis assemelha-se muito ao canto desta espécie.

No entanto, há necessidade de pesquisas de campo e de laboratório para aceitar ou rejeitar esta hipótese e explicar tais alterações do canto do Saltator similis. Contudo, confirmando-se tal hipótese, vislumbra-se um imenso campo a ser pesquisado sobre a ontogenia do canto desta espécie, com desdobramentos em outros campos do conhecimento, como na ecologia comportamental e sociobiologia. Porque, tais mudanças no canto podem refletir mudanças nas relações sociobiológicas inter e intraespecíficas no que diz respeito à territorialidade, acasalamento, dentre outras relações comportamentais.


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Fonte: Atualidades Ornitológicas Nº 146 - Janeiro/Fevereiro 2009

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