O Menino e o Azulão

Por
Miguel Corrêa

O ano era 1958. O menino tinha 10 anos de idade. Magro, já alto para a idade, cursava o então 4º ano primário no Grupo Escolar Helena Pena, no bairro da Sagrada Família.

Era o primogênito. Abaixo dele seis irmãs. Três anos antes, vira findar-se seu sonho de então, de ter um irmão, com a morte de Frederico, com dois meses de idade, vítima de uma enfermidade congênita no coração.

Privado da companhia de um irmão e sofrendo com as brincadeiras familiares que o apelidaram de “bendito fruto entre as mulheres”, o menino se refugiava num mundo todo seu, cuja maior alegria era pegar e criar passarinhos.

A família vivia em uma casa modesta, e o pai era obrigado a se desdobrar em dois empregos para fazer face às despesas de tamanha família: bancário de dia e professor à noite. Os recursos eram poucos, e esse fato exigia que a mãe se desdobrasse na máquina de costura a fim de vestir aquela “mulherada”.

O quintal da casa era relativamente grande e nele se destacavam, lado a lado, dois imensos abacateiros e em frente aos mesmos, junto ao muro no fundo do lote, uma goiabeira ao pé da qual havia uma pedra onde o menino se sentava para desfrutar o prazer de ouvir e admirar seus passarinhos, com as gaiolas normalmente penduradas nos moirões da cerca de tela de arame que fazia os limites do terreno com um lote vago ao lado. Após o lote havia a casa dos vizinhos, também cercada com moirões e tela de arame, onde viviam dois garotos mais ou menos de sua idade que também tinham os mesmos hábitos.

O menino tinha poucos passarinhos. Eram quase sempre papa-capins (coleiros ou pretinhos como também eram conhecidos), passarinhos comuns, de pouco valor comercial mas de canto suave e melodioso. Eventualmente conseguia um canário chapinha (ou canário da terra) trocado com a meninada da região a troco de dois ou três papa-capins ou tiziu, capturados no velho alçapão de arame e madeira e pacientemente amansados e preparados pelo menino.

Por sinal outro prazer do menino era negociar os passarinhos capturados e com isso diversificar o seu plantel. Desde que não fosse o seu Pretinho de estimação, um papa-capim adquirido numa dessas trocas, machucado de tanto bater na gaiola, na muda de penas, feioso então como só ele. Mas o menino o amansou, colocando a gaiola em local de trânsito das pessoas da família e o Pretinho foi se acalmando, as penas cresceram e ficaram brilhantes, a cabeça preta, o peito amarelo sob o esverdeado das asas. Certo dia ouviu o menino o canto forte, anormalmente alto, potente. Os meninos vizinhos, que do outro lado do lote vago tratavam seus pássaros, pararam e também se admiraram. O Pretinho soltava o canto, como a demarcar com orgulho o seu território.

A partir daquele dia o menino não mais o pendurou na cerca, mas num prego que fixou num dos abacateiros, local alto, necessitando de um cabo de vassoura com prego na ponta para colocar e descer a gaiola.

A rotina diária do menino consistia em acordar bem cedo – precisava tirar as gaiolas do chão da cozinha a fim de evitar que a sinfonia dos cantos dos passarinhos provocasse a bronca do pai e acordasse as meninas cuja porta do quarto dava exatamente para a cozinha – ir comprar pão e leite no Bar do Santos na esquina das ruas Conselheiro Lafaiete e Célia de Souza, voltar rápido, tratar dos passarinhos, começando pelos mais ariscos, e finalmente do Pretinho.

Era o último a ser tratado, e após pendurá-lo no abacateiro, sentava-se o menino ao pé da goiabeira e, entre feliz e orgulhoso, ficava a admirar o canto inconfundível e invejado, até o momento de se dirigir ao grupo escolar. Eram momentos mágicos, com a casa ainda silenciosa, sentir o sol brilhando ainda tímido, a cantoria dos seus passarinhos, o verde da vegetação nativa do lote vago brilhando ao sol, ainda orvalhada.

Contrariado voltava à casa, alimentava-se sozinho com pão e leite e se dirigia à escola. Assistia às aulas até o meio-dia e voltava correndo para casa. Antes mesmo de trocar de roupa, dirigia-se ao quintal a olhar esperançoso para o alçapão. Geralmente estava ainda armado, e na cabeça do menino havia o sonho de um dia encontrar não um papa-capim, mas quem sabe um pintassilgo, um curió ou mesmo um azulão. Todavia nunca vira um desses solto. Ainda assim sonhava.

Vez por outra, ia com os meninos da região a pé até o Mercado Central, no centro da cidade, só para ver as lojas de passarinhos. À época o comércio de pássaros silvestres era livre, e o menino se extasiava olhando para todas aquelas espécies, vindas dos mais diversos locais do país.

Passaria horas ali, se pudesse. Gostava também de ver as gaiolas. Bonitas, vistosas marca RB, as mais desejadas, usadas pelos criadores de curiós e bicudos. Pensava se um dia conseguiria ter uma gaiola daquelas. Imaginava seu Pretinho numa gaiola RB. Que sucesso faria! Então voltavam para casa, comentando o canto de um curió, o metralhar de um catatau, o canto estalado dos canários chapinhas.

Alguns dias à tarde, gostava de jogar uma pelada de futebol no campinho de terra existente nos lotes vagos entre as ruas Bicas e Caldeira Brant. Para isso era preciso fugir, literalmente, de casa. Gostava do jogo renhido, disputado com os pés descalços, pernas das calças enroladas até o meio das canelas, suor, poeira.

Vez por outra o pai do menino voltava mais cedo do banco e o flagrava no meio da disputa. Era então obrigado a voltar devagar para casa, andando à frente do pai por cinco quarteirões, ouvindo a repreensão exagerada e repetida. A voz do pai era alta, não se importando com quem passava. O menino tinha vergonha. Cabeça baixa, ruborizado, não entendia e não se acostumava com aquele “espetáculo”. Mas não se emendava. Tão logo pudesse estaria de volta ao “campinho”, tentando ser mais esperto, um olho na bola outro nos ônibus da Viação Torres, tentando ver o pai antes do próximo ponto de parada para então fugir correndo. Mas quase sempre se distraía e quando percebia era tarde demais.

Chegava em casa com o pai ainda falando e, sempre calado, abstraindo de responder, refugiava-se no fundo do quintal, ao pé da goiabeira, até que a noite começasse a cair.

No dia seguinte a rotina. O gosto e o interesse pelos passarinhos desenvolveram no menino um ouvido aguçado para diferenciar entre os diversos sons ambientes, o piado ou o canto de uma ou outra espécie que estivesse na região e pudesse lhe interessar. Assim que identificado, buscava conferir as gaiolas e o alçapão para quem sabe, ser premiado com uma nova aquisição.

Certa tarde, distraído com outros afazeres dentro de casa, de repente ouviu um canto diferenciado, alto, imponente. Sentindo o coração disparar correu até o quintal e viu, sobre a copa de uma árvore alta no lote vago, um azulão. Suas penas brilhavam ao sol e no mais alto ramo soltava os sons de seu cantar característico, tantas vezes admirado pelo menino nas suas idas ao Mercado Central. Certamente fugira de alguma gaiola. Era um pássaro raro, não característico da região. Parecia manso. Não se assustara com a corrida espavorida do menino. Seu canto era um dobrado repetido, suave e forte, que fizera calar a passarinhada nas gaiolas. O menino percebeu que seus dois vizinhos do outro lado do lote também acorriam e rapidamente estavam posicionando suas gaiolas e alçapões. O menino pensou rápido. Tinha só um alçapão que ficava sempre na gaiola do Pretinho.

Lembrou-se de um amigo de nome Zé Martins, um menino humilde, filho de uma lavadeira, que morava a dois quarteirões, na rua Stela de Souza. Zé Martins tinha uma fêmea de azulão. Pediria emprestado e a usaria de maneira a atrair o pássaro que continuava no mesmo local, aparentemente alheio a toda agitação que ocorria nas duas residências que ladeavam o lote vago.

O menino saiu em desabalada carreira até a casa do Zé Martins. Este não estava, mas sua mãe não se incomodou de emprestar a gaiola com a fêmea.

Tirando o alçapão da gaiola do Pretinho o menino armou-o na gaiola trazida emprestada e pendurou-a no pé de goiaba, o mais próximo que conseguiu do azulão. Seus vizinhos olharam-no com indisfarçável preocupação. Afinal toda a lógica previa que o azulão deveria voar até a gaiola da fêmea e então avistar o alpiste no fundo do alçapão. Era questão de tempo.  Pouco tempo, e o sonho do menino de ter um passarinho valioso certamente estava prestes a acontecer.

Mas o que o menino não previra é que ao tentar chegar o mais próximo possível do azulão, este se assustara e voara diretamente para a casa vizinha, pousando a poucos metros de uma gaiola com um... papa-capim! Em seguida se instalou em cima daquela gaiola, desceu pela sua lateral , parou sobre a tampa do alçapão e finalmente foi capturado.

A algazarra feita pelos vizinhos era um misto de alegria e deboche. O menino não conseguia acreditar no que via. Como pudera isso acontecer, se ele estava com uma fêmea de azulão? Profundamente triste e decepcionado recolheu a gaiola da fêmea e devolveu-a à mãe do Zé Martins.

Ao voltar ainda pôde ver os vizinhos colocarem a gaiola do azulão na cerca junto ao lote. Este mostrando ser pássaro acostumado ao cativeiro começou logo a cantar.

Decepcionado o menino recolheu suas gaiolas mais cedo do que de costume e saiu à rua, buscando ficar longe do som do canto do azulão.

Daquele dia em diante, durante muito tempo, o menino não teve a mesma alegria em sentar-se ao pé da goiabeira. O canto do azulão na casa vizinha, como que proclamava aos quatro ventos a chegada do novo rei da redondeza, ofuscando com seu canto alto e forte, os acordes do Pretinho.

Alguns anos depois a família mudou-se para Santa Tereza. O menino cresceu, tornou-se homem.  Jovem ainda casou-se. Foi pai de quatro filhos e dois netos.

Em 2006, prestes a entrar na sua sexta década de vida, vinha de recentes revezes na sua vida pessoal e profissional. Em 2004 sofrera um acidente doméstico com fraturas sérias na fíbula e no tornozelo, que lhe deixaram sequelas de movimento. Em 2005 sua filha perdera, nos últimos meses de gravidez, o novo neto que levaria o seu nome. No mesmo ano a empresa na qual trabalhava há 29 anos, determinara o encerramento de suas atividades.

Apesar disso o homem, agora com os cabelos totalmente brancos, ainda gostava de passarinhos. Possuía alguns canários belgas, um trinca-ferro presente de um amigo e também um papa-capim igual ao Pretinho, para lembrá-lo de um tempo em que suas preocupações eram muito poucas e suas alegrias muito simples e intensas.

No dia dos pais de 2006, uma surpresa fora-lhe reservada. Os filhos já adultos e dispersos pela vida, resolveram presenteá-lo com...um azulão!!!

Adquirido de criatório oficial, devidamente anilhado, com documentação oficial do Ibama, foi-lhe entregue na hora do almoço. O homem sentiu seu coração bater forte. Ao longo dos anos tivera vários passarinhos, mas por alguma razão desconhecida, nunca adquirira um azulão. Poderia fazê-lo se quisesse. Todavia nunca tivera um.

Emocionado levou-o até os fundos da casa, colocou-o na melhor gaiola que possuía e pendurou-a num travessão junto dos demais passarinhos.

Aos poucos o azulão foi se ambientando. De repente parou num poleiro, arrepiou as penas e começou a emitir um canto baixinho, suave, pleno de harmonia, como a saudar a nova moradia.

O coração do homem aqueceu-se. Seus olhos brilharam e ele se sentiu novamente como um menino, sentado numa pedra junto ao pé de uma goiabeira. Estava feliz como há muito, muito tempo atrás.

10 comentários :

  1. Hoje, 17 de junho de 2011, pelo manhã, em indizível alegria e emoção, alguém me chamou e me mostrou, pelo Internet, esta crônica.
    Revi e reli a crônica(o Menino e o Azulão), alegre e emocionado. Foram momentos de alegria e satisfação, vendo mais uma vez o passado perante meus olhos. Com os olhos marejados de lágrimas e a custo contidas, li a crônica até o fim.
    Mais uma vez fiquei emocionado sentindo-me presente na história, da qual realmente fui um dos partícipes. Novamente pude comprovar a veracidade dos fatos, descritos com pureza de estilo e singeleza de linguagem, frutos de uma inteligência ímpar e sempre por mim admirado.
    Mais uma vez parabéns, meu querido MIG.

    Ass: o Pai do Menino

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  2. Muito legal, tio!
    Bacana demais ler histórias da família como essa!
    Beijão,
    Fred

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  3. Tio, segue um comentário que a mamãe pediu para publicar:

    Esta ternura que nós da familia ja conhecemos, fez do menino um grande homem,que se encanta com a natureza, que se emociona com o canto de um pássaro, que alimenta um gavião respeitando seu instinto natural e recebe dele o mesmo respeito em suas visitas diárias.Coisas pequenas de um grande coração. Mais uma vez parabens,mano.Gina

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  4. Tio, Mamãe pediu para postar a opinião dela. Lá vai:

    Esta ternura que nós da familia ja conhecemos, fez do menino um grande homem,que se encanta com a natureza, que se emociona com o canto de um pássaro, que alimenta um gavião respeitando seu instinto natural e recebe dele o mesmo respeito em suas visitas diárias.Coisas pequenas de um grande coração.Mais uma vez parabens,mano.Gina

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  5. Exemplos de seres humanos que deveriam estar multiplicados por bilhões em nossa sociedade. Ser feliz jamais estará ligado a valores quantitativos e sim aos qualitativos. E esse pequeno texto nos mostra o quanto nossa sociedade consumista, invejosa, individualista e despreocupada precisa de novos valores, valores sentimentais - VIVA QUALQUER QUE SEJA O TIPO DE AMOR.

    Parabéns amigo, também sonho com um azulão desde criança e passei, quando criança, várias horas olhando para um alçapão no quintal de minha pequena casa.


    Hercilio Mendonça Kienen
    Vila Velha - ES
    27-9903-9800

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  6. Nossa, que belo texto, tio! Esse seu talento e sensibilidade não só com as palavras, mas com o mundo, são únicos e especiais! Transportou-nos a uma época que não vivenciamos, mas que faz parte da história da nossa família, portanto, de nós mesmos. Espero ler, em breve, o conjunto de suas crônicas publicadas em livro. Estarei lá para aplaudi-lo. Um abraço do sobrinho, Pedro.

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  7. Tio, publico também o comentário da minha mãe, a pedido dela:

    "Mig, irmão querido, você ainda hoje, em seu coração, mantém intacta a criança que a vida não conseguiu apagar. Isso é lindo e nos faz sentir que vale a pena viver e sonhar, sorrir e chorar, enfim, quando o sentimento nos toca, nos humaniza e nos emociona. E a vida só vale a pena quando vivida com emoção. Você tem muito dentro do seu coração e gostaria que sempre compartilhasse conosco pois, assim, nosso mundo se encheria de lindas histórias, como esta por exemplo que me encheu os olhos de lágrimas relembrando nossa casa "perdida" no passado de nossas vidas. Bj grande. Te adoro.Mirinha"

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  8. Essa matéria éh um grande espelho da vida de antigos passarinheiros... emocionante!!

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