Por
Mario Arthur Favretto
“Assim, da guerra da natureza, da fome e da morte surge o mais excelso objeto que somos capazes de conceber, a produção dos animais superiores. Há grandeza nessa visão da vida, com seus vários poderes, insuflada que foi originalmente em algumas formas ou em uma, e no fato de que, enquanto este planeta prossegue em seu giro de conformidade com a imutável lei da gravidade, de um começo tão simples evoluíram e continuam a evoluir infindá-veis formas belíssimas e fascinantes.”
As frases finais do livro A Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin certamente representam o deslumbre de quando compreendemos mais um aspecto de como a natureza funciona e quando obtemos essa compreensão. Toda observação que é realizada passa a ter um aspecto diferente, passamos a ter indagações, questionamentos e até nos arriscamos a lançar hipóteses sobre o que estamos observando.
Poder-se-ia até dizer, adaptando e modificando a frase de Carl Sagan, que afirma que a astronomia é um exercício de humildade, assim também é a evolução. Nossa visão de mundo muda e começamos a ver os mútuos parentescos entre todas as espécies, encontramos nosso lugar em meio a este nosso pequeno planeta, este pálido ponto azul vagando no cosmos (Sagan 1996). Todos os comportamentos, hábitos e adaptações observadas passam a fazer sentido, passamos a valorizar todo ser vivo e toda a história que estes percorreram ao longo de milhões de anos.
Com esta compreensão do mundo, até a observação de aves muda, pois percebemos a beleza da vida que está envolvida em todos os comportamentos aviários; deixa-se de apenas observar e começa-se a admirar, a tentar adquirir conhecimento sobre as espécies que estão diante de nós quando em uma caminhada em meio às matas. Assim sendo, no presente trabalho tem-se o objetivo de apresentar informações sobre os processos evolutivos que envolvem as aves, algumas relacionadas às suas origens e outras às espécies atuais.
Inconstância da superfície terrestre
A superfície do planeta Terra não é estável e sempre ocorrem mudanças. Todos os anos é possível observar notícias sobre terremotos, maremotos e vulcões que entram em erupção. Há também eventos atmosféricos que provocam alterações na superfície, como furacões e enchentes. Estes eventos são um reflexo e um lembrete constante de que nosso planeta não é estável; a natureza é extremamente dinâmica.
Algumas dessas mudanças influenciam continentes inteiros, como é o caso da deriva continental. Questionamentos acerca da estabilidade e imutabilidade dos continentes foram feitos ao longo dos séculos por diversos geógrafos que notaram que as costas de diversos continentes poderiam encaixar-se umas nas outras, conforme se pode notar em um mapa. Porém, quem primeiro realizou estudos aprofundados para demonstrar estes fatos foi Alfred Wegener, com sua obra publicada em 1912, A Origem dos Continentes e Oceanos, que demonstrou que os continentes deveriam ser separados em placas tectônicas. Apesar disso, ele não demonstrou o que exatamente impulsionava a movimentação dos continentes (Bryson 2005).
Em 1944, o geólogo Arthur Holmes com a obra Principles of physical geology, demonstrou que o aquecimento radioativo gerado pelo núcleo da Terra, poderia gerar correntes de convecção nas camadas do manto, influenciando a crosta terrestre e fazendo-a se mover (Bryson 2005). Como a superfície terrestre é repartida em placas, nos pontos de encontro dessas placas pode ocorrer intensa atividade sísmica e vulcânica, devido à sua fragilidade.
Desta forma, no encontro de algumas placas, pode ocorrer, por pressão interna das correntes de convecção, um constante derramamento de magma, que ao se solidificar, auxilia a criar mais pressão que acaba por empurrar as placas tectônicas, fazendo-as se afastarem. Em outros pontos, uma placa tectônica pode estar sendo empurrada para cima de outra, com a de baixo sendo direcionada de volta para o manto. Esses movimentos podem ser lentos e constantes ou a pressão pode se acumular provocandoum grande deslocamento da placa tectônica, semelhante ao observado no Japão com o maremoto de 2011, onde a principal ilha do país foi deslocada em 2,4 m para o leste e o eixo da Terra foi alterado em 10 cm (Shrivastava 2011). O maremoto e sismo que ocorreram no Oceano Índico em 2004, causaram uma movimentação na placa tectônica da Índia de até 20 m em alguns pontos, além de ter alterado a posição do Polo Norte em 2,5 cm e também a rotação da Terra (Walton 2005).
A placa que é empurrada para cima pode acabar gerando grandes cadeias de montanhas, com eventuais deslocamentos que podem chegar a alguns metros durante eventos sísmicos, como Charles Darwin observou em sua viagem a bordo do Beagle quando visitava o Chile em 1835. Na ocasião ocorreu um grande terremoto, seguido de um maremoto, e que ocasionou a elevação de alguns pontos da costa. E na ilha de Santa Maria, localizada ao sul de Concepción (no Chile), conforme medições realizadas pelo capitão do Beagle, FitzRoy, a elevação da superfície chegou a 3 m (Keynes 2004, Darwin 2008, Darwin 2009).
Graças a essas alterações graduais que fósseis de moluscos marinhos podem ser encontrados no alto de montanhas, e conforme Darwin observou, em alguns locais os fósseis indicam que a crosta estava acima do nível do mar, tendo sido posteriormente submersa e novamente soerguida, havendo fósseis de moluscos marinhos e de árvores intercalados em diferentes camadas das rochas (Keynes 2004, Darwin 2008, Darwin 2009).
Outra implicação que demonstra a movimentação das placas tectônicas é que se os continentes permanecessem parados, todos os milhões de toneladas de matéria erodidas pelos rios e levadas aos oceanos anualmente (por exemplo, as 500 milhões de toneladas de cálcio), multiplicando-se por todos os milhões de anos que isto ocorre, deveria haver 20 km de sedimentos no fundo dos oceanos, fato que não ocorre (Bryson 2005).
A questão é que os continentes se deslocam como uma esteira rolante, mas em geral lentamente. Em alguns casos, a partir do encontro de duas placas tectônicas, como ocorre no fundo do Oceano Atlântico em que se encontra uma cordilheira submersa, de norte a sul, eventualmente os picos desta cordilheira emergem, caso dos Açores e ilhas Canárias. No meio desta cadeia de montanhas localizada submersa no Oceano Atlântico há uma fenda, com até 20 km de largura e extensão de 19.000 km. Em algumas partes desta fenda o magma emerge e vai pressionando as camadas já solidificadas para as laterais e como indicam as datações realizadas, quanto mais próximas da fenda, mais recente é a rocha que emergiu do manto, e quanto mais distante, mais antiga (Bryson, 2005).
Multiplique-se estas alterações por bilhões e milhões de anos, e o que temos são mudanças constantes na superfície terrestre, modificando os ambientes. Assim, para que as espécies sobrevivam, também precisam se modificar. Como muitas vezes a fauna e a flora são deslocadas junto com os continentes em suas movimentações ao longo de diferentes climas, acaba-se por criar um sistema natural de seleção. Aqueles indivíduos que possuem alguma característica que os torne mais aptos a sobreviverem e se reproduzirem diante das alterações ambientais, são os que passarão seu material genético adiante, mantendo sua “linhagem”, apesar das alterações que elas sofreram por influências genéticas e ambientais.
Deriva gênica
Deriva gênica ou derivação genética é a variação aleatória dos genes em uma população. Mayr (2009) a considera irrelevante em grandes populações devido à reposição, pois apesar desta derivação poder ocasionar a perda de genes, nestas populações o fluxo gênico, ou seja, a troca de genes entre os indivíduos durante a reprodução, acaba por repor os genes perdidos. Porém, populações pequenas podem ocasionar o chamado efeito fundador, por terem uma amostra restrita dos genes de uma população (Rice 2007, Mayr 2009).
Neste caso, se um pequeno grupo de aves chega a uma ilha, constituirá ali uma população menor, com menor diversidade gênica do que a população original. Na população original, a maior quantidade de indivíduos permite que ao longo de diversas gerações haja maiores opções de escolhas de parceiros, havendo então maior “mistura” dos genes ao longo das gerações. Enquanto na população da ilha o número de genes é restrito, como nenhum indivíduo é igual e toda prole herda metade dos genes de cada um dos progenitores, essas alterações vão afastando a população nova da população original, derivando-a. A deriva gênica é uma peça importante da seleção natural, uma vez que Darwin fazia menção à “descendência com modificação”, ou seja, dois indivíduos se reproduzem e a prole é diferente de ambos os pais, apesar de possuir genes de ambos.
Seleção natural ou seleção por sobrevivência
A seleção natural é um processo simples e pode ser exemplificado da seguinte forma: na primeira fase produz-se variação entre os indivíduos de uma espécie por meio de mutações, crossingover, meiose nas células reprodutivas, recombinações genéticas, e, após, os fenótipos produzidos destas variações genéticas são selecionados pelo ambiente (Mayr 2005). As espécies geralmente se distribuem em populações e estas não possuem uma distribuição homogênea. Em todo o território que ocupam existem barreiras geográficas como montanhas, rios, lagos e oceanos, além de restrições ecológicas. Geralmente os indivíduos que habitam os extremos dessa distribuição estão isolados. Ao longo de sua distribuição os indivíduos estão expostos às mais variadas condições do ambiente e, apesar de cada um ser geneticamente único, todos, sem exceção, estão sujeitos às mesmas. Portanto, a evolução age sobre esta variação das espécies ao longo de sua distribuição através das diferentes pressões exercidas pelo meio ambiente (Mayr 2009).
A grande maioria dos indivíduos de uma população morre antes de ter sucesso reprodutivo, devido aos perigos encontrados, sejam doenças ou predações. Os que sobrevivem e conseguem se reproduzir passam seus genes para as próximas gerações e com eles as características que podem ter feito com que eles tivessem um sistema imunológico que os tornaram mais resistentes a uma doença ou alguns segundos mais rápidos a ponto de escapar de um predador. As pressões ambientais acabam por “selecionar” alguns indivíduos que conseguem sobreviver e se reproduzir, enquanto outros são eliminados.
Um exemplo clássico do efeito do ambiente ocasionando a seleção natural sobre aves foi estudado por Grant et al. (1976), com os tentilhões de Darwin nas ilhas Galápagos. Foi constatada uma correlação entre a heterogeneidade ambiental e a variação morfológica nos bicos das aves. No caso de Geospiza fortis (Passeriformes: Emberizidae), a variação fenotípica fazia com que os diferentes indivíduos explorassem distintos recursos alimentares com eficiências diferentes, demonstrando o controle da seleção natural sobre as variações no fenótipo de uma população.
Figura 1. Hydropsalis torquata, exemplo de Caprimulgidae, cujas penas
auxiliam a camuflá-lo com o ambiente (Foto: M.A. Favretto).
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Ainda relacionado à seleção natural, é possível citar os exemplos de aves noturnas (Wallace 1871), como as famílias Caprimulgidae e Nyctibiidae (Figura 1). Estas aves possuem uma plumagem de coloração que camufla o indivíduo no ambiente, o que é conhecido como cripsia; é simples imaginar as pressões seletivas da predação que levam uma população a gradualmente adquirir estas colorações, quando os indivíduos que possuem uma plumagem que os tornem só um pouco mais indistinguível em meio à vegetação têm suas chances de sobrevivência aumentadas.
Ainda relacionado à cripsia gerada pela seleção natural pode-se mencionar o caso de fêmeas de algumas espécies de Cotingidae e Pipridae que em geral possuem tonalidades de cores que se misturam à vegetação, servindo como uma proteção para o período em que as fêmeas estão chocando os ovos, dificultando a localização do ninho por algum predador (Promislow et al. 1992). Outros exemplos desta forma de seleção natural ocasionada por pressões de predação e sobrevivência podem ser encontrados na família Tinamidae, por serem aves que vivem a maior parte do tempo no solo. Em geral, possuem coloração de tonalidades marrom e bege com listras que servem para camuflar o indivíduo em meio à vegetação (Gluckman & Cardoso 2010).
A espécie Hydropsalis (Caprimulgus) hirundinacea (Caprimulgiformes: Caprimulgidae) oferece também uma demonstração dos efeitos da seleção natural. Conforme Ribon (1995), H. hirundinacea possui duas subespécies: H. hirundinacea vielliard habitando lajeados de coloração escura na Mata Atlântica no Espírito Santo, possuindo plumagem também escura, e H. hirundinacea hirundinacea que ocorre na Caatinga do nordeste brasileiro, onde ocupa principalmente lajeados de cor clara, e neste caso, apresenta plumagem clara. Tem-se então uma espécie com populações divididas em diferentes fenótipos, selecionados a partir das exigências de diferentes habitats.
E, quando se mencionam subespécies, como as citadas no parágrafo anterior, esbarra-se em dois conceitos: um de que podem ser espécies que estão “nascendo” devido ao início de um isolamento reprodutivo entre estas populações e, outro, que talvez sejam populações que estiveram isoladas, mas não durante um tempo suficiente para terem sofrido divergência genética suficiente a ponto de não mais originarem descendentes férteis caso se encontrem (Vanzolini 1992).
As muitas discussões entre pesquisadores sobre conceitos de espécies e subespécies, são exatamente o esperado do fato de as espécies estarem sujeitas à evolução gradual. As discussões sobre as subespécies podem ser interpretadas como a confusão gerada pela existência de populações intermediárias entre uma espécie existente e outra que pode vir a surgir.
Os recentes registros de Pygochelidon cyanoleuca (Passeriformes: Hirundinidae) apresentando leucismo (Godoy 2012, Pacheco & Gagliardi 2012) também ilustram os efeitos da seleção natural sobre as aves, Essas mutações são consideradas deletérias, pois a coloração branca deixa o indivíduo mais suscetível à predação, por ser observado mais facilmente no ambiente (Møller & Mousseau 2001). No entanto, como observou Godoy (2012), um indivíduo de P. cyanoleuca com leucismo convivia normalmentecom o bando, indicando a possibilidade de que a pressão seletiva não advenha da própria espécie e sim confirmando os efeitos dos predadores, que no caso de sua ausência possibilita a sobrevivência de indivíduos que possuam alguma forma de mutação (Møller & Mousseau 2001). Fato similar foi observado em Pipraeidea melanonota (Passeriformes: Thraupidae): uma fêmea com leucismo conseguiu nidificar na natureza, porém não houve coleta de dados que permitisse afirmar se ela obteve sucesso reprodutivo, ou seja, se sua prole sobreviveu ou não (Moura et al. 2010).
Os efeitos da seleção natural são também observados nas aves de ilhas como no caso do dodô Raphus cucullatus (Columbiformes: Columbidae), um Columbidae terrestre das ilhas Maurícias. Devido à ausência de predadores terrestres na ilha, foi possível a sobrevivência desta ave com vida terrestre e quando da chegada dos primeiros colonizadores foi rapidamente exterminada por fazer seus ninhos no chão e por não ter medo de humanos (Hume 2006). O passeriforme Xenicus lyalli (Passeriformes: Acanthisittidae) foi o habitante da ilha de Stephens exterminado por diversos gatos ferais introduzidos por humanos, sendo este também uma representação de que na ausência de pressões ambientais as aves podem perder sua capacidade de voo (Barreiros 2012).
A ausência de voo é encontrada nas ordens Struthioniformes, Anseriformes, Columbiformes, Gruiformes, Ciconiiformes e Passeriformes, na maior parte em arquipélagos. Merecendo destaque a Nova Zelândia onde 25 a 35% das aves terrestres ou de água doce são desprovidas do voo (incluindo as espécies extintas), e esta perda do voo geralmente é relacionada à ausência de predadores, recursos limitados ou abundantes, ou aumento do tamanho corpóreo (Brown & Lomolino 2006).
Grant et al. (1976) demonstraram os efeitos do ambiente sobre o bico das aves em apenas algumas gerações; deste modo, ao observamos as aves e toda a sua variedade de bicos, estamos olhando para anos de pressão exercida pela seleção natural. Este resultado é o que vemos quando admiramos o bico de um beija-flor que hoje parece adaptado para sugar o néctar de flores ou o bico de uma ave de rapina com sua força para dilacerar carne. Porém, se a exploração de recursos alimentares diferentes pode influenciar em alterações na forma do bico das aves, estas também podem ocasionar modificações em suas vocalizações (Grantet al. 1976).
Neste ponto é importante ressaltar o mencionado por Mayr (2005) que afirma que por vezes usar o termo “adaptado” pode gerar certa confusão, pois as características adaptadas são um resultado da evolução variacional, que consiste na produção de grande variação entre os indivíduos a cada geração e na sobrevivência daqueles que restam depois da eliminação dos fenótipos menos aptos. Ou seja, a adaptação é um resultado da evolução e não uma meta a ser alcançada.
Como a exploração de recursos diferentes por uma mesma espécie pode já ocasionar a separação de indivíduos com diferentes preferências, as modificações na vocalização somam-se a esta segregação impulsionando-a ainda mais, havendo diferenças, no caso de algumas aves, na escolha de parceiros por parte das fêmeas conforme seus “gostos” por diferentes vocalizações (Podos & Nowicki 2004).
A plasticidade fenotípica, ou seja, a capacidade de um genótipo produzir mais de uma característica morfológica, também desempenha um importante papel sobre a seleção natural. Algumas características fenotípicas do animal podem ser alteradas antes de ocorrer uma modificação genética relevante, trazendo benefícios para sua sobrevivência e reprodução e até permitindo uma divergência de espécies sem necessariamente ocorrer um isolamento reprodutivo significativo (West-Eberhard 1989).
A importância desta plasticidade fenotípica pode ser observada em Pinaroloxias inornata, um Thraupidae da ilha Coco, que atualmente tem a capacidade de explorar quase todos os habitats da ilha e se alimentar de diversos artrópodes, néctar floral e extrafloral, 17 espécies de frutos, sementes, moluscos e pequenos lagartos. Essa “evolução intraspecífica” provavelmente desempenha um importante papel na divergência de uma espécie em outras, por meio de especiação simpátrica ou parapátrica (West-Eberhard 1989). Apesar de a especiação simpátrica ser considerada rara e ter poucas evidências de sua ocorrência, sendo provavelmente mais comum após um período inicial de alopatria, é possível que a diferença de hábitos alimentares devido à heterogeneidade do ambiente possa ao longo do tempo criar pequenas variações na forma do bico das aves, em consequência, alterando também suas vocalizações, que implicarão na segregação de grupos de aves com preferências similares por alimento e pares que prefiram uma determinada sonoridade de vocalização (Bolnick & Fitzpatrick 2007, Grant & Grant 2010).
A seleção natural não deve ser tratada apenas como a sobrevivência dos indivíduos que são realmente melhores, pois neste caso, a eliminação de muitos indivíduos reduziria rapidamente as variedades fenotípicas. Desta forma, indivíduos que não são tão “ruins” no que se refere à sua sobrevivência também conseguem passar seus genes adiantes, enquanto que os verdadeiramente inferiores quanto à sobrevivência em um determinado ambiente são eliminados (Mayr 2005).
Por exemplo, em um ano de grande escassez, apenas os indivíduos realmente “melhores” conseguem sobreviver, porém em anos mais brandos, como em geral ocorre, indivíduos com diferentes capacidades conseguem sobreviver. Apenas aqueles realmente menos capacitados vão sendo eliminados. Isto permite que haja um aumento nas variedades presentes dentro de uma população, sendo que é sobre essa grande variação que a seleção natural e a sexual agirão (Mayr 2005).
Outra importante demonstração da seleção natural e dos efeitos do ambiente sobre as aves pode ser encontrada nos processos de convergência evolutiva, o mesmo nicho ecológico ou zona adaptativa é ocupado por organismos semelhantes, mas sem parentesco, pois as pressões e oportunidades ambientais similares resultam na seleção de fenótipos também similares (Mayr 2009). Neste caso é possível citar as famílias Picidae e Dendrocolaptidae (Figura 2), pertencentes até mesmo a ordens diferentes, mas que por ocuparem nichos similares, ambas as famílias de aves escaladoras de árvores, apresentam fenótipos (aspecto físico) similares devido às pressões seletivas semelhantes.
Também as famílias Hirundinidae e Apodidae são fenotipicamente similares devido ao nicho que exploram quando em voo. Pode ser citada ainda como possível convergência evolutiva, a similaridade entre os bicos de Ramphastidae e Bucerotidae, famílias de ocorrência neotropical e paleotropical, respectivamente, devido aos hábitos alimentares similares destes dois grupos, consistindo de frutos e pequenos animais (Figura 3).
Um estudo recente realizado por Brown & Brown (2013) com Petrochelidon pyrrhonota por meio de um longo monitoramento de populações constatou uma correlação entre a redução do tamanho das asas desta espécie e a redução de sua mortalidade por atropelamento em rodovias. Sendo este um forte indicativo da ação da seleção natural nestas populações, pois os indivíduos com asas menores possuem uma maior facilidade para realizar manobras no ar o que permite que eles escapem das colisões com veículos e assim sobrevivam e passem seus genes com as características de asas curtas para as próximas gerações.
Exemplo similar foi observado em um experimento com a resposta das aves ao tráfego em rodovias, onde se verificou a ação da seleção natural, pois as aves foram selecionadas para responderem ao limite de velocidade das rodovias e sua velocidade de fuga é baseada nesta velocidade média e não na velocidade em que o carro realmente está se locomovendo. Ou seja, em estradas com velocidade média mais lenta, as aves esperavam até que os carros estivessem mais próximos para levantar voo e em estradas com tráfego mais rápido, elas levantavam voo a uma distância maior do carro. Assim tem-se um cenário onde as aves que buscavam alimento em rodovias que respondiam aleatoriamente à velocidade de cada carro podem ter sido eliminadas e aquelas que fugiam baseada em uma velocidade média conseguiram sobreviver e ter sucesso reprodutivo (Legagneux & Ducatez 2013).
Seleção sexual ou seleção para sucesso reprodutivo
O que poderia explicar a existência de aves de cores vistosas como em muitas espécies da família Pipridae, Trochilidae, Fringillidae, Thraupidae e Cotingidae, se tais colorações tornam tais
aves mais visíveis para predadores? A seleção sexual, ou resumindo em uma frase, a seleção para sucesso reprodutivo em competição com integrantes da mesma espécie (Mayr 2005). Em diversas espécies destas famílias muitos machos possuem uma coloração vistosa, enquanto as fêmeas possuem uma coloração que as camufla melhor em meio ao ambiente (Figura 4). Estes são os casos em que as chances de se obter um parceiro para se reproduzir fornecem maior vantagem para o sucesso reprodutivo do que a simples sobrevivência do indivíduo em relação a alguma predação potencial, apesar dos riscos que surgem. Pois para a evolução não basta que o indivíduo sobreviva, é necessário que passe seus genes adiante e neste ponto é que a conquista de um parceiro reprodutivo supera os riscos de ter sua sobrevivência reduzida.
No entanto, a seleção do parceiro reprodutivo não age de forma isolada, ela está relacionada com a seleção do nicho da espécie, sendo que em algumas ocasiões a heterogeneidade de nichos pode ocasionar uma diversificação na forma de seleção de parceiros. Fêmeas com nichos diferentes podem ter preferências diferentes no que se refere às características dos machos contribuindo para a divergência das populações de uma determinada espécie (Mayr 2009).
Um fator também relacionado à seleção sexual nas aves é o canto; o fato de muitas aves o produzirem apenas em época reprodutiva já demonstra sua importância para a obtenção de sucesso reprodutivo. Em muitas espécies as fêmeas preferem cantos mais complexos e, aliados a este fator, características do ambiente onde as aves vivem poderão influenciar na frequência que seu canto deverá possuir (Price 1998). No entanto, em populações isoladas nas quais houve uma redução da pressão de seleção sexual pode ocorrer uma redução na complexidade das músicas, ou seja, havendo menos competidores o canto se torna menos complexo e as fêmeas acabam por escolher o mais razoável dos machos disponíveis (Price 1998).
Neste contexto, atualmente as aves que habitam o ambiente urbano podem estar sofrendo alterações em seu percurso evolutivo, pois o excesso de barulho nestas áreas pode afetar a forma de comunicação entre os indivíduos de uma espécie de ave alterando as preferências das fêmeas e a competição entre os machos (Rios Chelén 2009). Estes ambientes ocasionam alterações na duração do canto e em sua versatilidade, assim como, em alguns casos, em sua frequência, provocando modificações na forma como a seleção sexual agirá sobre os indivíduos (Rios-Chelén et al. 2013).
A exploração de novos habitats pelas aves poderá implicar em alterações na seleção natural e também na seleção sexual. Por exemplo, se uma ave começou a ocupar um hábitat diferente e neste local há um novo tipo de parasita, as fêmeas ao longo do tempo começarão a escolher os machos que ostentarem características que indiquem que estes estão saudáveis e possuem bons genes contribuindo para seu sucesso reprodutivo e estas características poderão ser diferentes daquelas ostentadas em seu antigo hábitat (Price 1998). Esta escolha pode não acontecer de forma consciente e sim por meio da eliminação (falta de sucesso reprodutivo) das fêmeas que tenham “gostos” inadequados, sendo eliminadas do reservatório gênico da população biológica.
O efeito do parasitismo foi demonstrado sobre os ornamentos sexuais de Volatinia jacarina (Passeriformes: Thraupidae), onde houve diferenças entre machos parasitados e não parasitados no que se refere ao tamanho das asas, cauda e peso, tendo os machos sem parasitas apresentado maior persistência e taxa de execução de displays (Aguilar 2005). Estes fatores implicam no sucesso reprodutivo destas aves, porém não ficou demonstrado se a resistência a parasitas é herdada geneticamente.
Na ave norte-americana Haemorrhous mexicanus (Passeriformes: Fringillidae), as fêmeas são marrons e os machos têm colorações da cabeça e do peito que variam de amarelo pálido até alaranjado e vermelho brilhante. Segundo Coyne (2009), nesta espécie as fêmeas preferem se reproduzir com os machos de cores brilhantes. O motivo é que a coloração dos machos varia, pois depende dos carotenoides absorvidos em sua alimentação, pois quanto mais bem alimentado o macho, mais vermelha e brilhante é sua cor. Assim, esta característica funciona como uma sinalização para as fêmeas “olhe para mim, sou um macho que consegue obter uma boa quantidade comida eposso alimentar seus filhotes”. Desta forma, os genes que fazem as fêmeas escolherem machos mais vistosos são beneficiados, ou seja, são passados para as próximas gerações porque estes machos conseguem auxiliar melhor no cuidado parental devido à sua capacidade de obter mais alimento.
Os cantos das aves também servem para a competição entre os machos, não apenas para agradar as fêmeas, mas para alertar possíveis competidores para que se afastem de seu território. Em algumas espécies, por exemplo, Agelaius phoeniceus (Passeriformes: Icteridae), ave da América do Norte e Central, um macho só consegue copular com uma fêmea caso possua um território, e neste caso poderá obter várias fêmeas, tentando manter afastados outros machos utilizando-se de vocalizações e somente em último caso agressão física, por ser uma ação que oferece grande risco e maior gasto de energia (Coyne 2009).
Figura 5. Chiroxiphia caudata macho na parte superior da imagem e fêmea na parte inferior (Ilustração: Swainson 1841). |
Efeitos nítidos da seleção sexual são observados na família Pipridae, na qual os machos se reúnem em grupos para realizarem exibições para as fêmeas que escolhem aquele que possui características que mais lhes agradem. Assim, o isolamento de espécies ancestrais em fragmentos florestais gerados durantes os ciclos de glaciações, bem como, entre rios de grande porte como na Amazônia, pode ter separado populações e nestas populações isoladas as preferências das fêmeas podem ter divergido e em consequência, as próprias espécies (Anciães et al. 2009).
Apesar do risco que os machos correm por ostentarem plumagens vistosas e cantarem para as fêmeas, fatores que os deixam mais expostos a predadores, em algumas espécies, como em Chiroxiphia caudata (Passeriformes: Pipridae) (Figura 5), foi verificado que os machos escolhem locais para realizar suas exibições para as fêmeas que contribuem para sua própria sobrevivência. No caso da referida espécie, são escolhidos locais com diversos galhos horizontais, que lhes proporcionam poleiros para seus comportamentos de corte e também dificulta o ataque de um possível predador (Flora 2010). Desta forma, pode-se afirmar que os indivíduos de C. caudata estão tentando reduzir os custos que a seleção sexual impõe a eles.
Considerações finais
No presente trabalho foram apresentadas algumas das formas pelas quais as espécies sofrem modificações ao longo do tempo, seja por influência do meio ambiente na busca pela sobrevivência ou pela necessidade do sucesso reprodutivo. Em suma, todas essas modificações ocasionadas são pequenas de uma geração para outra, mas acumuladas ao longo de milhões e até mesmo em milhares de anos, podem fazer populações separadas de uma espécie divergir, resultando no processo de especiação.
Desde a publicação de A Origem das Espécies de Charles Darwin em 1859, os diversos processos evolutivos têm sido estudados e analisados por diversos pesquisadores, tendo gerado uma enorme quantidade de dados publicados em diversos periódicos. Apesar de nem sempre estes fatos serem compreendidos pela população em geral, entendê-los gera uma profunda admiração pela natureza, pois se percebe todo o caminho evolutivo percorrido ao longo de milhões de anos pelos seres vivos e que todas as espécies existentes hoje, sejam menos ou mais complexas, estão interconectadas por antepassados em comum e são resultado da persistência de indivíduos que há muito deixaram de existir, tendo deixado o legado de sua sobrevivência em meio às alterações ambientais e de seus genes passados para suas progênies.
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Fonte: Atualidades Ornitológicas, 177, janeiro e fevereiro de 2014
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Fonte: Atualidades Ornitológicas, 177, janeiro e fevereiro de 2014
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